Só 15% da energia tem suporte fotovoltaico; recarga de um Tesla demanda 12 painéis solares

Se há uma coisa que o brasileiro tem de sobra, em relação a qualquer estrangeiro, principalmente o de Primeiro Mundo, é a predisposição para o golpe. De modo que ser passado para trás, tapeado, ludibriado, enrolado, trapaceado é, para nós, uma verdadeira vocação. Por esta razão, não é de se admirar que, na última semana, voltou a ser notícia a inauguração, em março de 2021, do primeiro “ecoposto” para recarga de veículos elétricos (EVs) na paradisíaca Fernando de Noronha. Na ilha, a proibição da circulação de automóveis movidos por motores a combustão começa a vigorar, em 2030, mas até agora são geradores a gasóleo – combustível usado por propulsores do ciclo Diesel – que produzem a energia elétrica disponível para a frota atual de 70 EVs. “O Projeto Trilha Verde prevê a instalação de 12 ecopostos, sendo oito pontos de recarga rápida com potência de 22 quilowatts (kW) e outros dois com potência de 7,4 kW”, destaca o presidente da Neoenergia, que é um braço do grupo espanhol Iberdrola, Saulo Cabral. A empresa está presente em 18 Estados brasileiros, além do Distrito Federal, atuando no setor elétrico desde 1997.

O leitor mais atento já começa a ver que, de brasileira mesmo, a Neoenergia só tem a aparência, mas sigamos em frente: as duas unidades de 7,4 kW terão suporte a V2G, do inglês “vehicle-to-grid”, com fluxo bidirecional que permite, além da recarga, a “devolução” da eletricidade não utilizada – é como se você pagasse por uma peça de queijo, comesse metade, devolvesse a outra parte, mas não fosse ressarcido de metade do dinheiro que pagou, um “negócio da China”. Inicialmente prometida para março, a geração fotovoltaica de 100 kWp (por pico) por duas novas “usinas” – o correto, para quem tem caráter e responsabilidade jornalística é o termo “estações” – solares ainda não foi concretizada, mas a credulidade do brasileiro nunca leva prazos em conta – se começar a cobrança, acaba atrasando ainda mais.

Entre os parceiros da Trilha Verde, a Renault cederá seis EVs – outros quatro serão adquiridos pela Neoenergia – para capacitação de profissionais locais para sua manutenção. Ou seja, empresta seis para vender quatro, já que, ao contrário do que ocorre em qualquer outra região do país, as revisões por lá não são feitas em concessionárias ou pontos assistenciais, mas, provavelmente, na barraquinha que vende água de coco. “Para a Renault, é um privilégio contribuir com o programa Noronha Carbono Zero e, assim, ajudar na preservação de um patrimônio ecológico da humanidade”, destaca o presidente da subsidiária nacional da marca, Ricardo Gondo – que lindo, um homem que vai salvar o planeta!

É uma pintura tão bonita, um quadro tão perfeito que o cidadão de inteligência mediana acaba se indagando: mas por que diabos os países europeus não instalam painéis de energia solar em cima de cada telhado de suas edificações, ao invés de queimar trilhões de litros de combustível fóssil para gerar energia em suas termoelétricas? Não bate sol no hemisfério Norte, não?!?

“Praticidade nenhuma”

“Na ponta do lápis, você precisaria de 24.000 watts de painéis solares e 125 baterias de 12 volts para rodar o equivalente a 0,2 milha (o equivalente a 320 metros)”, explica o administrador e cientista político Tyler Benedict, ex-analista do Goldman Sachs e diretor associado da Bain&Company. “Este cálculo leva em conta quatro horas diárias de sol a pino, para carregarmos uma bateria auxiliar de 200 Ampère-hora (Ah), que teria toda sua energia sugada assim que você conectasse seu EVs a ela, mais rápido do que o tempo que levei para fazer essas contas”, acrescentou.

De acordo com ele, que fez seus cálculos a partir de um modelo doméstico – e não de uma “usina” como a anunciada para Fernando de Noronha – 20% da carga se perderia só na conversão, enquanto a energia passa pelo inversor, e uma recarga completa levaria 40 horas ou mais. “É uma questão matemática. Portanto, não há praticidade nenhuma nisso, porque as recargas seriam tão demoradas que não daria para percorrer uma distância útil em relação ao tempo perdido”, sentencia Benedict.

Empresas estrangeiras como a EmPower Solar e a SunPower, que vendem soluções de energia solar para uso doméstico, garantem o contrário, assegurando que a economia anual pode chegar a US$ 1.000 (o equivalente a R$ 5.300). Esta segunda afirma que, com 75 painéis fotovoltaicos, daria para alimentar as baterias de um Model S, da Tesla, diariamente – para um motorista que roda, no máximo, 60 quilômetros por dia, seriam necessários “apenas” 12 painéis.

E em termos industriais?!?

“No nosso caso, os veículos estão rodando com a energia produzida, unicamente, pela luz do sol e nenhuma outra fonte”, atesta o diretor executivo da californiana Envision Solar, Desmond Wheatley. “Nossa rede é implantada, rapidamente, porque as empresas ou entidades governamentais que a utilizam não precisam obter licenças ou incorrer em custos infraestruturais. É escalável e pode atender a qualquer frota, enquanto os veículos movidos a energia solar não geram emissões”, acrescenta Wheatley, pontuando que a rede de energia norte-americana não tem capacidade suficiente para atender sua demanda normal e, ainda, alimentar milhões de novos EVs. “Precisaríamos de 20%, no mínimo, mais capacidade”.

Um sistema com quatro painéis solares com geração de 1 kW, ocupando oito metros quadrados, gera o equivalente a 850 quilowatt-hora (kWh) anuais, eletricidade suficiente para 24 recargas das baterias de um EV de médio porte, por exemplo, o que se traduziria em uma autonomia de 5.200 quilômetros. Ou seja, enquanto o leitor é levado a crer que, em Fernando de Noronha, estão sendo construídas “usinas” para captação, conversão e fornecimento de energia solar, a realidade prática é muito diferente e menos parecida com um filme de ficção científica.

“Cada estação de carregamento é uma vaga de estacionamento. Os painéis solares ficam no topo, enquanto o equipamento eletrônico está logo abaixo. O usuário conecta seu carro à tomada e está configurada a rede”, explica Wheatley. Na cidade de Nova York, maior “cliente” da Envision e parâmetro de comparação para nossas maiores regiões metropolitanas, que são Rio de Janeiro e São Paulo, cidades infinitamente maiores que Vila dos Remédios, em Fernando de Noronha, o custo unitário de uma estação de recarga EV-ARC da empresa é de US$ 65 mil (o equivalente a R$ 345 mil). “Só a economia com a parte estrutural em relação à rede elétrica convencional, já que nossa estação dispensa cabos e custos de instalação, chega a US$ 40 mil, em 20 anos”, assegura.

Estudo demonstra “potencial”

Para nos certificarmos se as promessas de Wheatley e da Neoenergia não são, apenas e tão somente, papo de vendedores, tomamos por base a boa e velha Suíça, referência de tudo que é bom neste mundo. No país, o setor fotovoltaico (PV) está crescendo rapidamente em popularidade, cobrindo 5% do consumo de eletricidade do país, que tem uma frota de 200 mil automóveis híbridos e 70 mil EVs. Lá, a equipe liderada pelo professor de Engenharia de Geoinformação da ETH Zurich, Martin Raubal, promoveu um estudo para saber se proprietários conseguiriam recarregar as baterias de seus EVs, a partir de energia solar, sem que isso restringisse o uso do carro por mais tempo do que já ocorre, na recarga convencional.

“As pessoas, com toda razão, nos perguntam como poderão usar seus EVs, se eles tiverem que ser carregados durante o dia, enquanto o sol está brilhando”, comenta Raubal, que é doutorando no Instituto de Cartografia da ETH Zurique e cientista do Instituto de Pesquisas Avançadas em Inteligência Artificial (IARAI), de Viena. “Nossos resultados mostram que os proprietários de veículos elétricos poderão recarregá-los, sem restrições de uso, mesmo sem armazenamento intermediário. Em escala doméstica, a potência máxima de carregamento foi de 11 kW, com pico de até 25 kWp. O problema é que, usando a rede convencional, apenas 15% da demanda de eletricidade é suportada pelo sistema fotovoltaico e só com a implementação de um controle inteligente, conseguimos ampliar este percentual para, no máximo, 56%.

Se o leitor comparar os números do parágrafo acima com os divulgados pela própria Neoenergia, verá que durante a pesquisa com 78 usuários domésticos, na Suíça, foi obtida uma potência de recarga maior do que a anunciada para a “usina” de Fernando de Noronha e que, na opinião até mesmo de quem vende este tipo de solução, o uso da energia solar como fontes estrutural, comercial e pública de recarga para EVs não passa de um projeto ou, no caso brasileiro, de uma propaganda enganosa. “Nosso estudo demonstra o potencial do carregamento inteligente para um fornecimento descentralizado e que, no futuro, pode ser usado em estações de recarga”, assinala Raubal.

Para além disso, é pura crendice.