Acordo ultrapassa a cifra de US$ 100 bilhões; Ford quer lucro de U$ 10 mil por carro

Ford e Volkswagen assinaram um acordo de gigantes, em 2019, contemplando uma parceria para desenvolvimento e produção de veículos comerciais, modelos elétricos (EVs) e até autônomos (AVs). O pacto, que ultrapassa a cifra de US$ 100 bilhões (o equivalente a mais de R$ 480 bilhões) só em economia de escala, otimização e comutação de infraestrutura e de arquiteturas, mostra dois projetos hercúleos de reconfiguração industrial: de um lado, a vocação germânica para a engenharia e manufatura e, de outro, o marketing do Tio Sam e sua habilidade para as vendas. “Nossa plataforma MEB servirá de base para 15 milhões de automóveis, na próxima década, e nosso objetivo é transformá-la em uma espécie de padrão global para este segmento”, disse à época o presidente-executivo (CEO) da VW, Herbert Diess. Já o chefão da Ford, Jim Farley, vem frisando desde então que “esta é uma grande mudança de cultura” e que “administrar uma marca que faz automóveis com motores a combustão é muito diferente de outra, que busca o sucesso na fabricação de EVs”.

A Ford dá todas as pistas de que irá abandonar seu modelo produtivo secular, acelerando uma espécie de desindustrialização programada como a que implementou, no Brasil. “Farley pretende alcançar uma margem de lucro de US$ 10 mil (o equivalente a quase R$ 50 mil), por veículo”, comenta o analista da Morgan Stanley, Adam Jones. “Para alcançar este objetivo, a marca terá que agir de forma ‘não tradicional’, guinando para um modelo de vendas diretas, que permita à companhia absorver a receita que, durante décadas, ficou retida nos seus concessionários e ainda reduzir os custos trabalhistas, na outra ponta”, acrescenta Jones.

Diante da precarização do trabalho, esta redução de custos com mão de obra significa fechar fábricas e, diante da eterna briga com os revendedores, a perspectiva é de que a Ford estuda como tirá-los do negócio. Simples assim.

Mega fornecedora

A Volks, por seu lado, acredita que pode ser tornar uma espécie de mega fornecedora, provendo marcas que, até ontem, eram suas concorrentes diretas. “A Ford comprará conjunto por conjunto, afinal investimos US$ 7 bilhões (quase R$ 34 bilhões) só na plataforma MEB”, afirma Herbert Diess. Fato é que, sem a Volkswagen, a Ford não alcançaria seus objetivos, nem se fizesse mágica. É que o grupo alemão vai fornecer as bases para todos os sete EVs com que os norte-americanos irão colocar seu plano europeu de eletrificação em prática, a partir de 2024. O primeiro modelo desta linhagem, um crossover, tomará emprestada a plataforma do ID4, da Volks. “Juntos, teremos velocidade para avançar à eletromobilidade e, obviamente, alcançarmos lucratividade”, pontua o diretor de tecnologia do grupo alemão, Thomas Schmall – ex-presidente da VW do Brasil.

Neste ano, a Volkswagen pretende reduzir o tempo de produção por veículo, na sua principal fábrica de EVs, em Zwickau (na Saxônia), de 30 para 20 horas – apenas para efeito comparativo, a Tesla deve conseguir a marca de dez horas por unidade, em Gruenheide (próximo de Berlim). “Estou preocupado com Wolsburg”, disse Herbert Diess, quando se dirigiu aos trabalhadores da maior fábrica da indústria automotiva em nível mundial, na Alemanha, na retomada da produção com o fim do pico da pandemia. “Meu grande trabalho, hoje, é garantir que seus filhos e netos possam ter um emprego seguro aqui, na VW, no futuro”, declarou. O chefão da marca se lembra bem que, há cinco anos, foi assinado um pacto trabalhista para produção de 820 mil unidades na planta, mas os números ficaram na casa das 400 mil unidades, em 2021, e a crise dos semicondutores segue afetando as linhas de montagem.

Já a Ford não parece tão preocupada com o fator produtivo. No ano passado, a marca norte-americana revelou que um de seus futuros lançamentos usaria a plataforma MEB, da Volks, e, na semana passada, confirmou que terá outro modelo montado sobre uma arquitetura alemã de EVs – sua fábrica em Colônia receberá US$ 2 bilhões (quase R$ 10 bilhões) em investimentos, para a produção da dupla. Em outubro do ano passado, nasceu o primeiro filho deste casamento, o furgão Tourneo Connect – espécie de irmão gêmeo do Volkswagen Caddy. Apesar de ainda ser equipado só com motores a combustão interna, ou seja, de não antecipar a sua virada para a eletromobilidade, o lançamento amplia a lista de modelos ianques no seu portfólio. Na prática, o fabricante mais representativo dos Estados Unidos, aquele que personificava o caráter industrial do Tio Sam, se torna cada vez mais um terceirizador daquilo em que foi pioneiro, com a introdução da linha de montagem: a produção fabril.

Ao meio

Na semana passada mesmo, a Ford anunciou a venda da sua fábrica romena, pouco tempo depois de informar que sua subsidiária europeia deixará de ser um braço autônomo, dentro do organograma da companhia. No início deste mês, seu CEO, Jim Farley, disse que a gigante norte-americana estava separando o negócio de veículos com motores térmicos dos modelos elétricos. “Estamos, literalmente, dividindo a companhia ao meio”, adiantou à AutoNews. Como se pode imaginar, esta divisão não será fácil, até porque a família do seu fundador – Henry Ford – controla o grupo por meio de ações (títulos) especiais. “Até 2030, os EVs representarão 30% de nossas vendas globais. Vamos prosperar na eletrificação, sabendo que estes segmentos são fundamentalmente diferentes, desde a forma como os produtos são desenhados e feitos, dos talentos que recrutamos, da forma de atrair os clientes”, garantiu Farley.

A Ford quer atingir uma margem operacional de 6%, no Velho Continente, já no ano que vem para, depois, superar um volume anual de vendas de 600 mil EVs, em 2026, e elevar o lucro para a casa dos 10%, na Europa. Enquanto isso e dentro do pragmatismo germânico, a VW anunciou que remota a produção de modelos elétricos nas fábricas de Dresden e Zwickau – onde monta os ID3, ID4 e ID5, o Audi Q4 etron e o Cupra Born – na próxima semana, depois da interrupção em função do fornecimento de peças da Ucrânia. Vale citar que a Volkswagen alcançou um lucro operacional de 19,3 bilhões de euros (mais de R$ 102 bilhões), em 2021, fechando o ano como a mais rentável das marcas europeias. E apesar de seus ganhos terem ficado na casa dos US$ 10 bilhões (R$ 48,2 bilhões ou menos de a metade da Volks), a Ford viu seu lucro crescer 260%, no mesmo período.

Como o leitor pode ver, enquanto o apaixonado por carros sonha com uma estrada de lajotinhas de ouro que o leve ao encontro do Mágico de Oz, a expertise industrial e o conhecimento financeiro de duas das maiores gigantes do setor automotivo mundial servem a uma criação ainda mais fabulosa: o bom e velho capital.