Conflito e falta de chips devem derrubar produção mundial

O interesse dos brasileiros na conflagração entre Rússia e Ucrânia é espantoso, principalmente se consideramos que, em 21 dias de guerra, morreram menos de 800 civis na Europa Oriental, quando, só entre 24 de fevereiro e 17 de março de 2017, 3.683 pessoas morreram no Brasil de causas violentas (decorrentes de homicídios, agressões e acidentes de trânsito), o que corresponde a uma mortandade 360% maior em um mesmo período de três semanas. Estranheza à parte, a combinação dos desdobramentos do conflito com a escassez de chips deve reduzir a produção global de veículos automotores em nada menos que cinco milhões de unidades, só nos próximos dois anos. A estimativa é da consultoria automotiva S&P Global Mobility, que prevê números de 81,6 milhões, para 2022, e 88,5 milhões, para 2023. “A queda será enorme”, garante o diretor-executivo da empresa, Mark Fulthorpe. “No pior cenário de nossas projeções, quatro milhões de unidades deixarão de ser produzidas, só neste ano”, acrescentou.

De acordo com ele, os efeitos mais negativos da guerra entre Rússia e Ucrânia serão sentidos nos preços da energia e das matérias-primas, cenário que será potencializado pela escassez de semicondutores. “O fornecimento de paládio, metal do grupo da platina que é um insumo fundamental para os conversores catalíticos, será um grande problema”, avalia Fulthorpe. “Nos últimos dias, surtos de Covid-19 na China e na Coreia do Sul também vêm levando à interrupção das atividades em muitas fábricas, principalmente nas cidades chinesas de Shenzhen e Changchun. Toyota, Volkswagen e Tesla estão entre as empresas que paralisaram suas linhas”.

A conjuntura aponta, mais uma vez, para os modelos elétricos (EVs) e sua promessa de independência em relação aos combustíveis fósseis. “Existem soluções estruturais que podem nos ajudar a reduzir a demanda por petróleo não apenas da Rússia, mas também da Arábia Saudita e do Irã”, aponta a diretora de eletromobilidade da Transport&Enviroment (T&E), que reúne organizações europeias não-governamentais (ONGs) para promoção da sustentabilidade no setor de transportes, Julia Poliscanova. “Só no ano passado, os carros que guiamos consumiram US$ 78 bilhões (o equivalente a R$ 393 bilhões) em petróleo, dos quais US$ 19 bilhões (mais de R$ 95 bilhões) foram importados da Rússia”, enumera.

A executiva detalha que, hoje, os EVs já respondem por 10% das vendas de zero-quilômetro no mercado europeu, mas que essa participação precisa crescer. “As frotas corporativas, por exemplo, já poderiam estar 100% eletrificadas, mas enquanto a Bélgica planeja limitar seus incentivos fiscais apenas aos modelos elétricos, a partir de 2026, França e Alemanha seguem subsidiando suas demandas internas por petróleo”, critica Julia. “A verdade é que, mesmo seguindo as propostas da União Europeia (EU), importaremos 250 milhões de barris de petróleo da Rússia, até o final desta década. E isso representa um cheque anual de R$ 30 bilhões (R$ 151,2 bilhões)”.

 Interdependência

De uma só vez, a especialista detalha como os contratos de importação e exportação enlaçam os países europeus e como os boicotes anunciados, até agora, não passam de conversa para boi dormir. O eurodeputado holandês Jan Huitema, por exemplo, apresentou um projeto para corte de 75% nas emissões de gás carbônico dos automóveis de passeio e comerciais leves, até 2030, e há um grupo, dentro do Parlamento da EU, que deseja a eletrificação completa dos zero-quilômetro já em 2025. “É uma proposta apoiada por dezenas de ONGs, que reduziria em 7,5 vezes a demanda do petróleo russo para 33 milhões de barris e geraria uma economia anual de US$ 4 bilhões (R$ 20,1 bilhões)”, calcula a executiva.

Apesar do clamor das ONGs, o governo alemão confirmou, nesta semana, seu apoio ao projeto que vai zerar as emissões apenas em 2035, o que significa que a interdependências enérgica entre as nações da Europa Ocidental e a Rússia irá durar, ao menos, mais uma década. Em outras palavras, o noticiário da mídia hegemônica brasileira trata uma questão estrutural de médio prazo na base da fofoca, da mesma forma que embarcou na afirmação dos Estados Unidos, de que o Iraque possuía armas de destruição em massa, na época da Guerra do Golfo. “Sobre o fim dos motores a combustão, alguns países tinham metas mais ambiciosas, mas até mesmo o pacote ‘Fit for 55’, que visa uma redução em 55% dos gases que provocam o Efeito Estufa, até 2030, tornaram-se inviáveis com o aumento do custo da energia”, explica a ministra alemã do Meio Ambiente, Steffi Lemke.

É claro que nos comentários do Instagram, do Facebook e do WhatsApp surgirão “entendidos” muito mais preparados que a ministra, para dar palpite sobre este assunto, mas a UE não segue a cabeça de adolescentes atrás de velhos computadores, no Brasil, como bem sabe o leitor deste espaço. “Sabemos que não temos tempo a perder, mas a mudança de padrões setoriais para redução da dependência de importação de combustíveis fósseis não só para o transporte, mas para todo o setor energético, acarreta em custos que muitas nações não podem suportar”, pondera o ministro holandês da pasta de Clima e Energia, Rob Jetten, se referindo especificamente à Polônia e à Eslováquia – que, recentemente, “deram o grito”.

Imunidade

A perspectiva de antecipação da virada da eletromobilidade indica que os veículos autônomos (AVs), uma galáxia a milhões de anos-luz de distância do Brasil, ganharão cada vez mais espaço, até mesmo pela sua promessa de maior eficiência energética. E enquanto as subsidiárias brasileiras seguem agarradas ao etanol, como se cana-de-açúcar fosse a quintessência da tecnologia, gigantes do setor automotivo trabalham de olho em um futuro que pode espelhar os reflexos da guerra na Ucrânia. A BMW, em conjunto com a empresa norte-americana Qualcomm Technologies, pretende oferecer sua plataforma de condução autônoma, que estreia em 2025, para outras montadoras. Detalhe: o sistema tem como base chips produzidos pela própria Qualcomm – que adquiriu, no ano passado, a desenvolvedora Arriver e a Veoneer – o que lhe garantirá, pelo menos em tese, imunidade à outra crise de semicondutores, bem como ao petróleo russo.

“Nosso objetivo é ofertarmos uma plataforma aberta, adaptável conforme as necessidades que cada cliente – leia-se cada outra montadora – terá em face de seus produtos e seus mercados”, afirmou o chefe da divisão veicular da Qualcomm, NakulDuggal. A tecnologia, batizada de Automated Drive pela BMW, vai estrear na nova geração do Série 7 e nos modelos derivados da base New Class. “Estamos trabalhando nesta arquitetura para, primeiro, reduzirmos nossos custos de produção atuais e, segundo, ter mais uma alternativa de lucratividade para nosso negócio, bem como para nossos parceiros”, disse o chefe de ‘drivingexperience’ da marca alemã, Nicolai Martin.

Ele acrescenta que, com o novo sistema autônomo de Nível 3, a BMW conseguirá expandir o chamado Domínio de Design Operacional (ODD) que, de uma forma geral, implica em todas as condições de projeto de AVs, incluindo requisitos sobre o meio ambiente, tráfego e até mesmo sua interação com os ocupantes e sua interface entre o desenvolvedor e órgãos de regulação governamentais. Ou seja, trata-se de outra faceta de avanço do setor automotivo que para nós, brasileiros, parecem saídas do filme “Guerra nas Estrelas” – uma prova inequívoca de que, enquanto a questão entre Rússia e Ucrânia serve apenas para abastecer nossos telejornais com notícias muitas vezes falsas, inclusive, há todo um esforço de inteligência que opera a todo vapor, no além-mar, nos deixando cada vez mais à deriva, felizes em nossa ignorância.

Como diz o ditado: “é o dinheiro que move o mundo”…