Holografia faz a interseção entre físico e digital e leva o entretenimento a bordo para um patamar de ficção científica

O brasileiro se satisfaz com pouco, inclusive, pagando caríssimo por produtos obsoletos, há muito superados. De modo que há quem conte vantagem por ter pago “apenas” R$ 25 mil por um Gol “bolinha”, novíssimo, igual ao saído da concessionária. Uma semana depois, já com compacto devidamente rebaixado e equipado com um kit multimídia que não saiu por menos do que outros R$ 25 mil, o tupiniquim desfila orgulhoso por Pindorama, com uma felicidade de fazer inveja ao maior acionista do banco CreditSuisse – o inocente mal sabe que, se tivesse investido os R$ 50 mil na compra de cinco carrinhos de pipoca, ainda poderia se dizer um empreendedor. Mas esta é apenas uma das desvantagens de ser viver preso à realidade do Terceiro Mundo, porque, no além-mar, há um novo conceito veicular em gestação. A startup WayRay, por exemplo, desenvolve uma tecnologia que fará dos para-brisas superfícies holográficas e, para isso, já recebeu investimentos de quase US$ 110 milhões (o equivalente a mais de meio bilhão de reais) para finalizar o sistema que exibirá imagens virtuais, projetadas por feixes de laser em vários planos de profundidade no próprio vidro.

“O holograma proporciona uma sensação imersiva, fazendo com que o cérebro humano pense que os objetos projetados são reais, alguma distância à frente”, pontua o diretor de projetos da empresa com sede em Zurique, Michal Macuda. A companhia criou aquele que é considerado o primeiro veículo desenvolvido para o metaverso, o Holograktor. “Até mesmo a disposição dos bancos – são apenas três lugares, com dois assentos dianteiros e um traseiro – foi pensada para dar ao passageiro de trás uma melhor visão do para-brisa e do conteúdo sobreposto holograficamente, que proporciona a experiência da realidade aumentada (AR)”, detalhou Macuda.

Imagine, agora, embarcar no seu automóvel em qualquer metrópole global, como Nova Iorque, saindo do show de Beyoncé no Madison Square Garden e, ao simples toque de uma tela, vê-la dentro do carro consigo e, o melhor, interagindo com você. “Este é o potencial veicular do metaverso”, instiga o vice-presidente da Unity Software, empresa que está na vanguarda do desenvolvimento de plataformas globais para conteúdo em 3D, Dave Rhodes.  Este campo que vai além do ciberespaço, onde os mundos físico e digital têm uma interseção, promete levar o entretenimento a bordo para um patamar que, hoje, só vemos em filmes de ficção científica.

NFTs

“A Hyundai acredita que, até o final desta década, 20% de sua receita virá daquilo que batizamos de metamobilidade”, projeta o diretor global da marca sul-coreana, Thomas Schemera – 50% virá do faturamento com vendas de carros e caminhões e 30%, de drones (VTOLs). A companhia está investindo US$ 1,6 milhão (o equivalente a R$ 7,7 milhões) na Metaverse Entertainment, só em 2022. “Seremos pioneiros no uso da robótica, tanto no mundo real quanto no metaverso, para fornecer uma gama mais ampla de serviços de mobilidade”, acrescentou. No mês passado, a montadora anunciou sua primeira incursão no mercado de tokens não fungíveis (NFTs), em parceria com a Meta Kongz, se somando à Mercedes-Benz e à Lamborghini, que já emitiram NFTs de modelos virtuais com vendas limitadas a colecionadores.

Para quem não está habituado aos tokens não fungíveis, tratam-se de criptoativos de propriedade digital, usados para aplicações descentralizadas e, também, como prova de autenticidade para arquivos que podem ser facilmente copiados ou reproduzidos em massa. Os NFTs também são usados como uma espécie de registro imobiliário dos terrenos negociados em mundos virtuais, como no Decentraland – tratam-se de lotes imaginários, que não existem no mundo físico e que só subsistem nestas comunidades ficcionais, mas que chegam a ser vendidos por mais de US$ 50 mil (o equivalente a R$ 240 mil) o acre – unidade de medida equivalente a 4.040 metros quadrados –, em plataformas de realidade virtual (VR).

Os conceitos de ciberespaço e metaverso não são novos – pelo contrário. O termo ciberespaço já havia sido usado pela artista plástica e arquiteta dinamarquesa Susanne Ussing, no final dos anos 60, para batizar seu ateliê, em Copenhague, mas foi consagrado como um universo on-line, distinto da realidade, pelo escritor norte-americano William Gibson, no seu livro “Neuromancer”, de 1984. Já o termo e metaverso foi criado por outro escritor norte-americano, Neal Stephenson, para descrever o mundo virtual imersivo do seu livro “Nevasca”, de 1992. Portanto e apesar de muita gente estar maravilhada com estas formulações, os mais letrados as conhecem há, pelo menos, 30 anos. Mais do que isso, sabem muito bem que tanto o ciberespaço quanto o metaverso são simulações, dualismos, simulacros, emulações de uma existência.

Virtual e físico

“Isso significa que aquele belo carro esportivo conversível com que você roda, no metaverso, e comprou por US$ 100 mil (o equivalente a quase R$ 490 mil) verdadeiros, só ‘funciona’ quando você está no ciberespaço. Não há como usá-lo para dar uma volta em uma estrada litorânea ou na praia”, explica o cofundador e diretor de tecnologia da Phiar, empresa de inteligência artificial (AI) automotiva, Chen-PingYu. Na prática, funciona assim: “A realidade aumentada, que vem sendo chamada de ‘metaverso do mundo real’, adiciona informações virtuais ao ambiente físico e os veículos autônomos possuirão muitos sensores, além de uma capacidade de processamento – de dados – que possibilitará esse tipo de experiência. As enormes telas de infotainment, os head-up displays (HUDs) e os comandos por viva-voz permitirão que a AR se combine à navegação, destacando, por exemplo, pontos de interesse e ofertas”, detalha Yu. “Expandindo essa conexão do motorista com o ambiente, vamos proporcionar uma vivência ainda mais imersiva, principalmente quando ele estiver sozinho”.

Por falar em dirigir sozinho, tudo indica que isso será relegado ao passado e em menos tempo do que se imagina. “Em um futuro não muito distante, você terá um carona em 3D tão perfeito, que pensará que se trata de uma pessoa real”, garante Dave Rhodes, da Unity Software. “É uma grande inovação e o metaverso será embarcado nos automóveis de forma interativa, imersiva, hiper-realista, em tempo real e em todos os espaços do habitáculo. Em alguns anos, os modelos autônomos deixarão de ser, apenas e tão somente, um carro e se tornarão dispositivos inteligentes para se acessar espaços virtuais, que poderão ser adaptados para o entretenimento, reuniões ou games,

A Holorida, parceira da Audi no desenvolvimento da metamobilidade da marca, desenvolve uma plataforma wireless que, partindo do dispositivo pessoal de qualquer um de seus ocupantes, combina dados de navegação para criar uma experiência imersiva com uso de fones de ouvido. Por enquanto, ela se apoia, basicamente, em jogos, mas o objetivo é ampliar essa vivência para a realidade virtual. “Se você for ao laboratório de uma gigante do setor automotivo verá muitas aplicações em 3D para jogos, serviços e publicidade”, conta o cofundador e presidente-executivo (CEO) da empresa, NilsWollny. “Neste momento, é este o rumo que a indústria vem tomando. A partir de julho, estaremos equipando alguns modelos da Audi com um sistema de entretenimento VR, que combina experiências digitais e do mundo real”, acrescentou Wollny.

Segurança viária

Trata-se de uma tendência tão irreversível que, apesar de ainda estar em um estágio inicial, já desperta preocupação no que tange à segurança viária. “Temos muitos veículos com telas cada vez maiores e que podem ser usadas para diversas aplicações, muitas delas negativas em termos de segurança. Acho que estamos nos esquecendo de que este tipo de experiência pode perturbar o motorista”, avalia o vice-presidente da HighwayLoss Data Institute (HLDI), que mensura economicamente as perdas humanas e econômicas decorrentes de acidentes rodoviários, Matt Moore. “O futuro aponta para a condução autônoma, mas pelo menos a curto prazo ainda precisaremos que os motoristas estejam envolvidos na tarefa de dirigir. Afinal, a segurança é prioridade quando falamos de transporte”.

A WayRay também acredita que os condutores seguirão no comando, em curto e médio prazos, nem que seja à distância. “Acreditamos que os modelos totalmente autônomos ainda vão demorar para ganhar as ruas, por isso criamos um automóvel – o Holograktor – controlado remotamente, com volante retrátil, para que o condutor se junte aos outros dois ocupantes nesta vivência”, destacou seu diretor de projetos, MichalMacuda. De qualquer forma e para além das ilusões romanescas, das miragens fantasiosas de quem acredita que todo este avanço tecnológico serve, apenas e tão somente, ao bem-estar do consumidor, à felicidade do cidadão de bem, há a expectativa para um verdadeiro bombardeio de motorista e passageiros com conteúdo publicitário.

“Você não verá anúncios em outdoors, mas eles pipocaram virtualmente dentro da cabine. Uma mudança tão grande como essa vai transformar a relação que os anunciantes mantêm com seu público e a imersão na realidade virtual pode, sim, enfraquecer este elo”, o diretor global de marketing da Pulse Labs, empresa de gerenciamento e análise de dados a partir de inteligência artificial, Lincoln Merrihew. “E todos sabem que, quando algo atrapalha a fidelização do consumidor, os custos publicitários sobem. Por outro lado, a VR pode construir um novo tipo de relacionamento”, ponderou. “Aconteceu a mesma coisa com os smartphones, que se, por um lado, usurparam parte do diálogo entre as pessoas, por outro criaram um novo tipo de envolvimento”.

Está aí, tudo posto, mesmo que o tiozão do WhatsApp ignore inteiramente a metamobilidade, seu primo que “saca tudo de carro” continue achando que bom, mesmo, é aquele Gol “bolinha” do primeiro parágrafo deste texto e seu cunhado, coitado, ache que fez um negócio da China ao pagar R$ 200 mil – financiando R$ 100 mil deste total, em 48 prestações de R$ 2.900 – por um Volkswagen T-Cross com motor a combustão que, na Europa, já é o mico que ninguém quer, nem de graça…